"Eu mudei de forma tão expressiva, em alguns aspectos, que tenho dificuldade para me imaginar dentro de determinados padrões emocionais que eu já vesti. Há um estranhamento, é como se aquela pessoa que olho à distância não fosse eu. Claro que era, mas não muito. Claro que era, mas vestida com uma penca de coisas que não eram minhas. Com camadas e mais camadas que me escondiam de mim. Com roupas que fui trocando pelo caminho, nas várias mudas que já vivi. Houve um momento em que, ao me olhar no espelho do coração, eu me flagrei bem diferente. Eu havia mudado, sem sequer ter percebido enquanto acontecia. A vida é uma tecelã habilidosa, tece as mudanças, em silêncio, no tear do tempo.
De repente, a gente se olha e tem a impressão de encontrar quase outra pessoa, uma versão nossa revista e atualizada. Mas, no fundo, ela não é tão nova quanto aparenta. Estava lá, em estado de latência, o tempo todo, como a flor que já mora na semente e um dia desabrocha. Às vezes me ocorre que viver é se despir lentamente das peças que encobrem quem somos até que a idéia original apareça, uma espécie de strip-tease da alma. Podemos levar muito tempo para começarmos a ficar mais parecidos com nós mesmos, mas também podemos passar uma vida inteirinha escondidos numa montoeira de roupa que não nos pertence. Mudar não acontece por mágica. A gente precisa querer se buscar.
Um dos padrões mais embaraçosos que deixei pelo caminho foi o de viver sob a perspectiva da falta. Na maior parte do tempo, eu via somente o que me faltava. O mais interessante, ao olhar para trás, é reconhecer que o que a gente vê com mais freqüência acaba se tornando a nossa realidade mais freqüente. É como se a vida precisasse se organizar para não desmentir a nossa visão. E tudo parece encolher para o olhar que é pequeno. Se fixo o olhar no que me falta, faltam olhos para ver o que eu tenho. Para usufruir do que já conquistei. Para me sentir em casa com a vida que eu posso viver agora, com todas as esquisitices dela, as imperfeições, as dificuldades, mas também com as possibilidades que ela me oferece exatamente aqui. O sentimento de falta nos leva pra longe. Lá onde ainda não é e talvez nem venha a ser.
Quando vivemos na freqüência da escassez, nosso coração não tem descanso. Ele não sai pra brincar, estamos ocupados demais lamentando o que não temos para perceber que talvez até já sejamos felizes. Felizes, mesmo ainda sem as coisas que podem tornar nossa estada por aqui mais rica e interessante. Em nenhum momento eu deixei de ter sonhos nem de agir na direção deles, eu deixei foi de ser prisioneira da minha expectativa. Há uma liberdade sutil em não se fazer da vida uma sala de espera. Passamos a viver cada dia de uma maneira mais amistosa e relaxada. Quando não esperamos tanto e não funcionamos tão aflitivamente no compasso da carência, podemos apreciar melhor o sabor de cada pequeno encontro. Da gratuidade dos detalhes mais simples. Da sutileza de encantos que os olhos que percebem somente a falta desaprendem a ver.
Eu desconfio que esse sentimento está também relacionado à dificuldade de autopreenchimento. À inabilidade para encontrarmos satisfação, antes, na nossa própria companhia. Afastados de nós mesmos, buscamos fora o que primeiro precisamos encontrar dentro. Como disse Goethe, "Tudo nos falta quando nos faltamos". Quando larguei pelo caminho essa roupa apertada, descobri que a natureza da vida é ser mais espaçosa, não importa o que nos contaram a respeito. Que a sensação de peso é um claro sinal de que algo está fora do lugar, porque viver, mesmo com todos os inevitáveis sofrimentos da nossa condição humana, é pra ser mais leve. Descobri prazeres que sempre estiveram disponíveis e eu não conseguia perceber. Confortos possíveis que a minha visão encurtada não podia notar.
Quando eu deixei de olhar tão ansiosamente para o que me faltava e passei a olhar com gentileza para o que eu tinha, descobri que, de verdade, há muito mais a agradecer do que a pedir. Tanto, que às vezes, quando lembro, eu me comovo. Pelo que há, mas também por conseguir ver."
Ana Jácomo
"Eu mudei de forma tão expressiva, em alguns aspectos, que tenho dificuldade para me imaginar dentro de determinados padrões emocionais que eu já vesti.
...Um dos padrões mais embaraçosos que deixei pelo caminho foi o de viver sob a perspectiva da falta. Na maior parte do tempo, eu via somente o que me faltava.
...Se fixo o olhar no que me falta, faltam olhos para ver o que eu tenho.
...O sentimento de falta nos leva pra longe. Lá onde ainda não é e talvez nem venha a ser.
...Quando vivemos na freqüência da escassez, nosso coração não tem descanso. Ele não sai pra brincar, estamos ocupados demais lamentando o que não temos para perceber que talvez até já sejamos felizes.
...Quando eu deixei de olhar tão ansiosamente para o que me faltava e passei a olhar com gentileza para o que eu tinha, descobri que, de verdade, há muito mais a agradecer do que a pedir. Tanto, que às vezes, quando lembro, eu me comovo. Pelo que há, mas também por conseguir ver."
PROFUNDO!!!
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